Morgana - Primeira Parte

PRIMEIRA PARTE

       Desistiu. Marianna falou à Amanda que não queria mais saber de vampiros. Queria viver sua vida de humana sozinha e em paz. Assim que Giuliano se mudou, a garota recebeu a notícia de que não havia passado no vestibular. Chateada, ainda estava confusa com todo aquele ano que perdera em função da amiga e seu namorado lobisomem.
       As férias estavam chegando ao fim. O verão estava absurdamente mais calor do que todos os outros que vivenciara. Tudo havia mudado. Criaturas sobrenaturais andavam soltas por aquela cidade. E foi aí que teve a ideia que mudaria aquele ano. Alugaria um apartamento na grande metrópole e se matricularia em um curso preparatório para passar na universidade que tanto queria, longe de problemas.
       E assim o fez. No primeiro dia de aula, se deparou com uma sala cheia. 150 pessoas fechadas e apertadas entre quatro paredes. Sem conhecer absolutamente ninguém, procurou um lugar vazio e sentou-se, aguardando. Chegou a sorrir consigo mesma. Aquele seria um ano diferente. Finalmente levaria sua vida em frente.
       Ao decorrer das aulas, percebeu que estava sendo observada. Arriscou dar uma olhada para trás, porém não conseguiu ser discreta. Era um garoto. Moreno de pele e cabelos lisos tão escuros quanto seus olhos. Fitava-a durante longos minutos e depois voltava a escrever algo em seu bloco de notas azul. E foi assim durante toda a aula até o tocar do sinal para o término do último período. Antes que ela pudesse olhá-lo mais uma vez, ele não se encontrava mais ali.
       A semana foi longa e demorada. Seria difícil fazer amizades ali. E aquele garoto repetia os mesmos movimentos todas as aulas. O relógio marcava meio dia e ele desaparecia. Era sexta-feira. Sentada na mesma cadeira que os outros dias, esperou paciente. Uma garota loira simpática e sorridente, que sentava na sua frente, virou-se para ela.
       “Você tem a matéria de geografia da aula passada? Fiquei doente e não conseguir vir.”
       Mari olhou mais uma vez para a garota, folheou o caderno até achar a página que procurava e alcançou para ela, sorrindo.
       “Meu nome é Morgana. E o seu?”
       “Marianna.”
       Havia alguma coisa naquela garota que chamava sua atenção. Ela lembrava um pouco Amanda.        Ficou com aquele pensamento até sair da aula, quando sentiu a presença de alguém.
       “Ei! Você é de onde?”
       Depois de se recuperar do susto, sorriu para a recém conhecida colega.
       “Sou daqui mesmo. Acabei de alugar um apartamento aqui nessa rua. Você é daqui também?”
       A vampira não respondeu. Ficou surpresa com uma cicatriz no pescoço de Marianna.
       “Onde arranjou isso? Parece ter sido feio.”
       “Ah” - ela soltou o ar preocupada com que diria à colega - “Não sei o que aconteceu.”
       Colocou a mão na cicatriz lembrando da mordida que levara de Amanda no ano anterior e sorriu sem jeito. Sem entender direito aquela cena, Mari sentiu a garota pressionar a mão em seu braço, prendendo-a ali com força. Olhando fixamente em seus olhos, a garota estranha rosnou.
       “Você é uma de nós?”
       A partir dali ela sabia com quem estava lidando. E não tinha dúvidas de que corria perigo. Olhou para os olhos vermelhos da vampira e tentou transmitir medo.
       “O quê? O que você é?”
       “Onde há mais de nós?”  ela mostrou os dentes afiados e apertou mais forte.
       Sabia o que fazer. Não contaria a verdade. Não podia. Deveria sair dali o mais rápido possível. Tentou manter o controle antes que fosse descoberta. Então mentiu.
       “Eu não sei. Não me machuque, por favor.”
       Morgana percebeu que a garota não sabia. Largou o braço dela e apenas a obrigou a esquecer aquela cena.
       “Você vai esquecer o que aconteceu. Vai voltar pra casa e almoçar.”
       Piscando algumas vezes, a humana segurou forte a mochila e, fingindo ter esquecido, começou a andar até seu prédio. Demorou até conseguir abrir a porta de casa. Sentou-se no sofá, tremendo. Nervosa, ligou o computador e havia um e-mail de Amanda. Queria tanto contar o que havia acabado de acontecer, mas apenas escreveu que tudo estava ótimo e que certamente conseguiria passar no vestibular.
       A fome havia passado. Decidiu ir para o quarto e deitou-se na cama fitando o teto. O silêncio do pequeno apartamento a fez pensar muito no que faria no dia seguinte. Tinha sido salva pelo anel que ganhara do amigo Giuliano. E novamente estava presa numa cidade sobrenatural. Não sabia se ria da situação ou se chorava de medo. Era loucura demais. Queria apenas que tudo voltasse a ser como era antes. Queria o abraço de conforto de sua mãe.
       Colocou um casaco e foi andar na rua. Na porta do prédio, encontrou o garoto. Aquele que a olhava todos os dias na sala de aula. Sorriu, mas logo escondeu o rosto. Gostava do ar misterioso que ele tinha. Mas antes que pudesse dizer algo, uma lembrança passou por sua cabeça. Ele podia ser um deles também. Abaixou o olhar e tentou passar por ele sem fazer nenhum contato.
       Morgana ainda se perguntava o motivo da cicatriz no pescoço daquela humana. Tinha certeza de que era uma mordida de vampiro. Isso significava que ela não era a única. Haviam mais, mas onde? Certamente ela havia sido manipulada para esquecer. Precisaria descobrir a resposta.
       Com a rua vazia, a humana andava sem rumo. Estava ficando tarde, o clima estava esfriando. Precisava voltar, mas algo a fazia ter vontade de descobrir mais sobre a vampira da sala. No dia seguinte, as duas se veriam novamente. Ficou intrigada. Ao chegar em casa, dormiu tranquila, deixando todos os problemas e preocupações de lado. Mas ela teve um sonho.
       Sonhou com Amanda. Como a amiga estava lidando sozinha com tudo aquilo? Encobrindo seus rastros devido à culpa de estar se alimentando de seres humanos, talvez. Acordou assustada. Esticou o braço pra fora da cama procurando pelo seu celular no criado-mudo, porém antes que olhasse para o visor, um barulho estranho ecoou no seu pequeno apartamento. Havia alguém ali, e não era humano.
       Levantando vagarosamente, colocou os pés descalços no chão gelado, pisando com cuidado para manter o silêncio. Entrou na cozinha esperando encontrar alguém, porém ao ligar a luz não viu nada diferente. Não sentiu nenhum movimento sequer. E tudo estava em seu devido lugar.
       Dormiu mal. Inquieta, de manhã foi para a aula e uma coisa lhe chamou a atenção. O garoto não estava na sala. A loirinha, Morgana, estava sorridente, porém seu humor se alterou imediatamente e se levantou da cadeira, se retirando. Mari levantou as sobrancelhas, curiosa e seguiu a garota. Ao longe, ouviu um estrondo e a voz estridente ecoando pelo corredor vazio.
       “Você está louco? Ninguém pode saber sobre mim. Se você se envolver com essa garota, nós estamos correndo perigo, está me ouvindo?”
       Mais um barulho. Conforme ia se aproximando, conseguiu ver alguém sendo pressionado nos armários por ninguém menos que a vampira baixinha. Reconheceu imediatamente o garoto estranho da sala. O que ele tinha com aquela garota? Ele era vampiro também?
       “Olha quem veio se juntar a nós...”
       Morgana disse sorrindo, largou o garoto e esticou a cabeça para ver quem era. Ela sorriu sem jeito para ele.
       “Tem alguma coisa errada aqui? Parece que ouvi alguém gritando.”
       Marianna falou, inocentemente. A outra garota se aproximou dela e ficou séria. Seu rosto aos poucos começou a se modificar. Mari teve certeza de que seria mordida, porém relaxou quando seus olhos encontraram os dela.
       “Não mate ela.”
       Surpresa, Morgana se virou para o garoto com um pensamento na cabeça. Porque ele havia a interrompido? Ele nunca fazia isso. Desde quando ele se importava com alguém a não ser por ela? Alguma coisa estava errada.
       “Já é a segunda vez que eu encontro essa garota e alguma coisa me diz que ela sabe de mais alguma coisa.”
       Não recue, não fuja. A humana repetia constantemente aquilo na cabeça enquanto olhava para a vampira. O garoto continuou parado, fitando-a. Desejava que ele fizesse alguma coisa para salvá-la antes que fosse tarde. Mas nada aconteceu. A mão de Morgana subiu em seu pescoço apertando fortemente e a passagem de ar foi se fechando até perder a capacidade de respirar. A tontura estava tomando sua cabeça. Sentiu seu coração acelerar freneticamente. Estava morrendo.
       “Não dessa vez.”
       A vampira decidiu que daria mais uma chance à garota. Daria um jeito de descobrir o que ela sabia. Acompanhou-a cair de joelhos no chão e sua cor voltar ao normal. Se sentiu culpada por um instante, porém se irritou ao ver o rosto de Eugênio. Estava preocupado, claro.
       Aquela era a hora da verdade. Marianna viu no chão perto do joelho um prego. Pegou-o e, com força, cravou-o na palma de sua mão. A dor foi tremenda. Franziu o rosto em uma careta, mas ignorando se levantou e olhou para a vampira. Frente a frente, as duas garotas ficaram. O cheiro se sangue era impossível de evitar. Morgana certamente se descontrolaria e acabaria drenando o corpo da garota em questão de segundos.
       “Então você sabe.”
       “Sei.”
       De trás da vampira recém pega de surpresa, o garoto se aproximou curioso. Os dois atentos a qualquer movimento da pequena humana indefesa. O garoto correu até ela segurando sua mão para ver o corte.
       “Cure isso.”
       Morgana pensou algumas vezes, mas se aproximou, mordeu o canto da mão e deu para Marianna. A humana hesitou, mas assumiu que precisava daquilo. Não estava considerando morrer de tétano. Depois de engolir algumas gotas de sangue, se afastou assistindo o ferimento se fechar e a vampira sair dali. E então estava apenas ela e aquele garoto sozinhos no corredor. Ele não queria falar nada. Não queria trocar palavras com ela, não ainda. Mas ela foi mais rápida.
       “O que você faz com ela?”
       “Eu trabalho pra ela.”
       “Ela se alimenta de você.”  respondeu rispidamente
       Ele fingiu não ouvir o que ela disse e continuou.
       “Eu coleto informações para ela e em troca ela me deixa viver.”
       “Você guarda o segredo dela.”
       “Você não faria isso?”
       “E ter que viver dando meu sangue pra essa garota? Não, obrigada.”
       “O que você sabe sobre isso?”
       Mas ela já tinha se retirado e ele correu para acompanhá-la. Em silêncio, os dois caminharam até a porta da escola onde ele parou.
       “Obrigada.”
       Ele esperou, sem entender o motivo do agradecimento.
       “Por ter me salvado.”

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